quarta-feira, 25 de maio de 2011

A saga dos Fromkers

Capítulo I - A viagem
     A noite trazia consigo alguma preocupação para o viajante Marohke. A mochila e a vara eram os únicos utensílios que o acompanhavam. Os membros enfraquecidos pela fome quase o obrigavam a parar, ainda que a tentação em continuar fosse colocada em questão vezes sem conta. Todos conheciam a lenda dos Fromkers. Nunca ninguém tinha sobrevivido aos ataques invisíveis, por isso poucos se arriscavam a permanecer mais do que o tempo que o caminho obrigava, principalmente se a viagem fosse à noite.


     Marohke, completamente desfalecido, não hesita e bate à porta da Quinta dos Fromkers com a sua vara bifurcada. Foi num instante que a decisão em seguir um caminho tão arriscado fora posta em causa, mas as suas forças estavam demasiado fragilizadas, não poderia caminhar nem mais um quilómetro e, se o fizesse, sabia que nunca mais o veriam, pois nada haveria para o salvar. A única casa que existia, depois da quinta, ficava a mais de trinta quilómetros, numa outra povoação e, nessa, diziam que aparecia uma cabra com duas cabeças e três caudas em forma de cobra.
     Ao abrir a porta, os guardas capturam-no de imediato. Marohke nem conseguiu dizer uma palavra, tal era a sua fome e sede. Os guardas levaram-no para o presídio habitual para onde eram levados todos aqueles que aguardavam para ser ouvidos por Botraks, o velho feiticeiro, o que só aconteceria supostamente na manhã seguinte. Entretanto, como mandavam as regras, Marohke teve direito ao banho, a um grande jantar e a um conforto divino para passar a noite, ainda que ficasse trancado a sete chaves num moinho velho junto à casa grande.
     A manhã chegara rápido. Enquanto o velho Botraks se preparava para mais uma comunicação ao seu povo, Botraks, que não conseguiu pregar olho, foi o primeiro a pedir para ser levado junto do chefe. A sua prontidão jogou a seu favor, foi um sinal de confronto muito apreciado pelos guardas, ainda que não o demonstrassem, mas logo se apressaram para fazer cumprir essa vontade.
     As palavras de Botraks não saíam. Todos olhavam desconfiados para Marohke. As nuvens não paravam, o rio disparava em bifurcação por entre os penedos abaixo. As árvores tremiam e o ar gélido tolhia-lhe os sentidos. Sem ouvir qualquer palavra, os guardas levam-no novamente para o moinho. Lá fora, ouvia gritos de crianças a brincar, mulheres a cantar e, ao longe, o barulho de sacholas e das rodas dos carros de vacas, as quais soltavam um mugir de vez em quando.
     Tudo parecia tão natural enquanto a frincha da porta deixava passar a luz do dia. O receio chegara à noite. Barulhos estranhos ecoaram de longe. Entre risadas e assobios, ouviam-se gritos infernais. O medo apoderava-se de Marohke.
   Junto ao Moinho, duas vozes pareciam conspirar contra o velho Botraks. A forma brusca como pronunciavam o seu nome deixava transparecer alguma instabilidade, mas Marohke não percebia o que se estava a passar e muito menos conhecia as regras da comunidade mais temida entre os mortais. Num instante, ouve-se um ruído estranho na porta. Alguém tentava abrir o moinho… Passos apressados… Silêncio absoluto. Agora é a chave a entrar na fechadura e mais uma vez Marohke é levado para o interior da casa. As melhores especiarias aguardavam-no para um jantar de pompa com Botraks. Marohke não conseguia compreender mais as atitudes que tomavam consigo. Ora era prisioneiro, ora tratado como se fosse um rei.
     A festa e alegria foram os ingredientes mais apreciados durante o jantar. Marohke era tratado como igual e, sem que esperasse, o seu nome fora pronunciado por Botraks. Este levanta-se e é-lhe oferecida hospitalidade. Quatro mulheres se aproximam e encaminham-no para os seus novos aposentos. Um quarto enorme, onde um banho de sais o esperavam, assim como uma terrina de frutas junto ao leito. No meio de tanta festa e oferendas, Marohke não sabia mais o que pensar. A desconfiança queria abandonar os seus pensamentos, mas a perplexidade perante as distintas situações eram cada vez maiores. E, pensava Marohke, se a comunidade trata tão bem os seus habitantes, por que será que aquelas duas vozes junto ao moinho conspirariam contra Botraks?
Pedro Miguel Sousa
in Caderno Cultural do Jornal Povo de Fafe (27-05-2011)

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